2.5.14

ZUZU: UMA OCUPAÇÃO HOLOGRÁFICA

UM OLHAR
por Helena Piccazio


Um sábado passado eu e minha mãe queríamos fazer algo, algo passeio, algo sem hora pra se atrasar e correr. Fomos à Ocupação Zuzu Angel. Eu era nova em matéria de Ocupações do Itaú Cultural, então quando cheguei achei que era só aquele quadradinho de espaço contendo a linha do tempo da vida de Zuzu. Minha mãe, já mais experiente, me avisou que a exposição continuava nos andares de cima e de baixo. Comecei por ali, pra descobrir mais sobre a estilista que eu conhecia de ouvir falar, assim por cima, da época do lançamento do filme.
O espaço estava cheio de gente e a fila se estendia por todos os anos, fazendo com que nós todos lêssemos mais ou menos na mesma velocidade. No miolo do quadradinho, revistas e sofás salpicados de gente que lia, olhava, conversava e até – uau! – dormia.

A personagem Zuzu Angel me pegou logo de cara, ela parecia interessante desde sempre. A moda que criou, os tabus que quebrou, sua atuação após a morte do filho.


No andar de cima, a vida antes de 14 de abril de 1971. Uma ampla e clara sala com muitos dos modelos criados, modernos e cheios de cor. E também vídeos, fotos e documentos, além da réplica do seu atelier de costura e criação, com um mural onde se pode deixar um recado escrito em pedaços de pano à disposição em cima da mesona de madeira.


No subsolo o choque da cor. A impressão de sufocamento pelo preto e vermelho das paredes e a vida depois de 14 de abril de 1971, dia da prisão de Stuart Jones, filho de Zuzu. Ali encontramos os modelos de protesto criados para as coleções que vieram depois dessa data. E uma prateleira com mais cartas e documentos, onde não consegui chegar porque estava muito cheio.  

O momento mais tocante foi ler, na entrada dessa ala da exposição, a carta de Hildegard Angel, filha de Zuzu, irmã de Stuart, pessoa que reuniu todo o material para essa ocasião. Ela diz que, através dessa reunião de objetos, tenta reconstruir sua mãe, assim como sua mãe reunia tudo que podia em busca do filho. E de tanto reunir e procurar e gritar e provar, Zuzu foi morta numa emboscada, ironicamente talvez, no dia 14 de abril de 1976.
Não posso dizer que saí dessa exposição como entrei. Foi como conhecer um pouco das entranhas da história ainda próxima do meu país através da vida de uma mulher, que nem sequer ativista política era. Era apenas uma mãe em busca do corpo do filho.
Mesmo tendo se passado tanto tempo, 38 anos desde a morte de Zuzu, o que aconteceu parece ainda estar presente, de algum jeito. Talvez porque alguns dos personagens da história ainda sejam os mesmos, como Hildegard, por exemplo. Ou como minha mãe, reconhecendo a moda “da sua época”.

Nota: 9
Custo: R$ 0, fomos e voltamos a pé.

OUTRO OLHAR
 por Claudia Piccazio



"...grená. Não, bordeaux... E fomos lá para o Grajaú." 

Hildegard Angel, filha mais nova de Zuzu Angel, perscruta a própria memória. A intenção é reconstituir em depoimento um dos momentos mais angustiantes da peregrinação da mãe em busca do filho, irmão de Hildegard. Uma peregrinação marcada pela perversidade, a mesma impressa na história do país nos tempos da ditadura.

Fui à Ocupação Zuzu Angel, exibida desde o dia primeiro de abril no Itaú Cultural, sem a noção exata da comoção que me causaria. Já no térreo, uma linha do tempo toda pontuada por cordões vermelhos presos na parede com furadores, peça que pertence ao universo de quem costura. Ali, também, depoimentos em vídeo de Hildegard e da própria Zuzu. Falam dos momentos que antecedem a morte do jovem Stuart, em 1971 e mostram uma entrevista de TV da Zuzu, no mesmo dia de sua morte, em 1976. Ambos, mãe e filho, mortos durante o regime militar. 

Ao chegar no primeiro andar, somos recebidos por um canteiro de espadas de São Jorge, da alma caipira. A mesma que elegeu, com muita consciência, a brasilidade para conceituar a moda e nela estampar pássaros, borboletas, folhagens e trabalhar com rendas, bordados e pedrarias nacionais. Lá estão as fotos da família, modelos exclusivos que representam a sua produção, estampas para tecelagem criadas por Zuzu bem como vídeos de desfiles nacionais e internacionais. E indagações que instigam o presente como a frase "O que sua roupa fala sobre você?" No fundo da sala, a réplica do atelier de costura. Ali, o universo de criação em completa intimidade entre as máquinas de costura, linhas, tesouras, cestas com tecidos, potes e potes de botões, caixas com croquis, coleção de dedais, rendas e cianinhas, moldes de papelão. Um lugar para se perder em lembranças.
  
Ao percorrer os espaços, percebo que tudo ali foi extremamente pensado para ser múltiplo. Até mesmo o lugar escolhido para a colocação de um simples alfinete parece estar preenchido de sentido, um sentido que ultrapassa o simples objeto e dá uma dimensão holográfica ao roteiro de vida de Zuzu, lincado, todo o tempo, à história do país e do mundo. E também ao presente. Na escolha dessa dinâmica, o resultado é uma Ocupação que vai além dos limites das salas do Itaú Cultural. Alinhados no Youtube, por exemplo, estão depoimentos da pesquisadora Heloisa Buarque de Holanda e do especialista em história da arte e história da indumentária e da moda João Braga (que conseguiu com muita propriedade contextualizar o trabalho de Zuzu no cenário da moda nacional e internacional) feitos especialmente para a Ocupação Zuzu Angel. E provavelmente lá estarão outros especialistas renomados dentre o batalhão de profissionais convidados, das várias áreas afins, para encontros, cursos, palestras, desfiles, performances, mostra de filmes permitindo assim uma ampla discussão sobre moda, arte, cinema, história, política. Curadoria, impecável. 

Encontro ainda no depoimento em que Hildegard afirma que sua mãe "estava se preparando para ser presa, para ser morta", o savoir faire de Zuzu em um episódio que seria hilário, se não fosse trágico. Um dia, ao receber uma de suas clientes, Heloisa Lustosa, filha do Pedro Aleixo, vice-presidente da República do governo Costa e Silva, Zuzu disparou "Oi Heloisa, me desculpe eu tô atrasada mas é que eu cheguei da minha sessão de parafina para tirar celulite porque eu soube que esses milicos, o negócio deles agora é assim, dizem que quando eles prendem a gente tiram toda a roupa e ficam rindo das nossas varizes e das nossas celulites...e da minha celulite ninguém vai rir!"

Fomos juntas eu e minha filha ver a Ocupação e o último lugar que percorremos foi o subsolo, o luto. Zuzu em negro e em rezas, com o que ela sabia, sentia e era, dedicado a um único propósito. Saímos caladas e eu precisei de um bom tempo para me recuperar, se é que me recuperei.

Nota: 10
Custo: R$ 0, fomos e voltamos a pé.