Acho fundamental, não só para as pessoas, mas para o artista. É um termômetro pra ele conhecer o público que não necessariamente teria acesso aos shows normais, pagos. Às vezes é complicado, pois quando é de graça existe um descompromisso. O fã fala: “Ah, era isso?”, e vai embora no meio. Tem de tudo. Tem também aquele que não é tão fã, passou por ali e acabou ficando. Por isso que acho que é um exercício bem interessante de exposição em que você consegue perceber algumas coisas que em shows normais você não perceberia, de reação de público.
Ia usar a minha viagem para fazer outras coisas, a curiosidade que eu tinha com a cidade (Londres). Na verdade, quanto a parte turística na Inglaterra, já tinha feito o que eu queria. Então eu fiquei mais tempo lá pra fazer música mesmo. Se eu não tivesse feito, eu voltaria a fazer o que eu sempre fiz, né? Trilhas sonoras de filmes, dar aulas de canto.
Você ainda dá aulas de canto?
Ah, eu não consigo. Hoje mesmo uma aluna me ligou e eu fico “marca, desmarca, marca, desmarca”. É muito complicado, minha vida não tem lógica. Tem gente que fala assim: “não, mas você só toca fim de semana”. Mas tem que fazer um show no Chile segunda, às vezes tem Fnac na terça...
O que de melhor você trouxe da Inglaterra para cá?
Eu trouxe esse ritmo, objetivamente falando. Eu trouxe loopings de drum´n bass, que é um ritmo que, entre os eletrônicos, já foi considerado o jazz do eletrônico. Muitos acham isso, como David Bowie. O que acabou ficando mais popular são as versões do drum´n bass mais simplificadas. Mas existem discos, por exemplo, que me lembram até o Chick Corea, na fase do
Return to Forever; uma fase bem interessante dele. As sonoridades de alguns discos de drum´n bass que cheguei a conhecer pareciam muito o Chick Corea, e tem muito músico de jazz tocando drum´n bass; mas isso já é um pouco mais underground, a gente não chega a conhecer.
Clarisse Lispector, quando perguntada sobre qual gênero literário em que se encaixavam seus escritos, declarou: “os gêneros não me pegam mais”. Você já viajou por vários estilos musicais diferentes, e vejo pessoas tentando te definir com inúmeros rótulos. Os gêneros ainda te pegam?
Na verdade, eu me considero ainda uma visitante dos gêneros. Eu acho que nunca cheguei a fazer um drum´n bass puro, como eu nunca fiz um samba puro, nem um funk puro. Quando componho, me sinto usando o ritmo como argumento para musicar aquela letra, e não necessariamente sou profunda conhecedora.
Você pega um exemplo bem clássico: Gilberto Gil. Ele faz reggae. Ele
é um cara que conhece reggae pra caramba, e tem até um disco em homenagem ao Bob Marley, o
Kaya N'Gan Daya. Eu sou uma pessoa que, apesar de ter pesquisado bastante sobre drum´n bass, não se considera uma conhecedora profunda. Eu não faço exatamente drum´n bass; faço canção brasileira com drum´n bass. Aí perguntam: “mas é sempre drum´n bass?”. Nem sempre; às vezes têm umas batidas que têm mais tendência ao reggae e outras coisas. É até um esforço meu chegar num ritmo mais absoluto, mas acho que já nos misturamos tanto - e a minha característica sempre foi por gostar de muita coisa - que acabei perdendo um pouco as fronteiras e não sabendo os limites das coisas. Então eu vou de um lado para outro.
Qual a importância de Tom Jobim na sua composição?
Sempre entendi que Tom Jobim era maravilhoso, mas sem profundidade. Isso foi até o momento em que eu resolvi estudar mesmo a obra dele, fazer uma análise harmônica - que seria como fazer uma análise sintática para o português; sujeito, predicado... Por quê é que Tom Jobim é considerado mundialmente um gênio? Porque ele é uma pessoa que pegou a harmonia no momento mais delicado dela, que é o impressionismo, e a levou a um nível que ninguém mais chegou.
Ele é quase um erudito. Na verdade ele passou o erudito. Tem um conhecimento, a música dele transparece um conhecimento que absorveu toda a época áurea em que a harmonia foi a mais sofisticada possível. Tanto é que alcançou um limite em que não tinha mais para onde ir, uma época em que as pessoas começaram a fazer músicas com ruídos, com não-sei-o-quê, ou dodecafônicas, que é uma outra linguagem. Aliás, é o momento da arte em que as pessoas comparam muito com artes plásticas, que é o impressionismo, e que tem todos os degradês, todas as nuances das cores...
Acho que o impressionismo tem essa característica também na música, de passar por semitons de uma forma muito complexa, muito difícil. Jobim tem essa grande capacidade, e chegou, dentro dessa música que a gente chama tonal - que é a música canção - num nível que ninguém chegou, nem os jazzistas. Se você pegar Herbie Hancock e outros, eles fazem coisas muito ricas, muito sofisticadas, mas em outra linha, o modalismo. Dentro da tonalidade, da canção, não.
A canção exige, no mínimo, algumas coerências para você conseguir cantar. Não pode ser algo tão aleatório. Uma canção é boa se for fluente, se ela for carregável monocordicamente. Quer dizer cantar, você sair daqui cantando. As músicas de Tom Jobim têm uma melodia naturalmente impressionante, só que são muito sofisticadas. É algo que você fala: “Nossa, como que uma coisa que parece tão simples pode ser tão complexa?”. Tanto é que a música
Só tinha de ser com você é extremamente sofisticada, apesar de não parecer. Isso é, para mim, o extremo do gênio.
Ter entendido também racionalmente Tom Jobim faz com que eu saiba te responder isso melhor. Acho que ele é uma pessoa que levou a harmonia ao extremo. Depois de Tom Jobim nada aconteceu.
Como é seu processo de criação?
É como se fosse um estado de paixão por alguma coisa, na maioria das vezes. Se eu leio um texto de um poeta que eu adoro, por exemplo: ou naturalmente me vem uma melodia na cabeça ou então eu quero conviver com aquilo, interpretar, trazer pra perto de mim. Compor é uma forma de me aproximar dessa admiração.
A grande maioria, cerca de noventa por cento das músicas que fiz, são a partir da letra. As minhas letras têm a ver com algo que eu vivi. Às vezes saem meio que simu
ltaneamente. Começo a compor uma letra e, na seqüência, já faço a melodia. Quando saem juntas é outra história. Como eu não me considero uma letrista, escrevo o que é muito necessário para mim; é outro processo. Diferente de quando eu componho para outra letra que não minha. O sentimento, então, é o de ter vontade de visitar a cabeça de outras pessoas, muito diferente de falar o que eu sinto. Aí entra a intérprete, que é a cantora que quer cantar outra coisa. Ela não quer cantar minha vida, ela quer cantar... Isso eu percebo muito quando eu estou gravando disco. Quando eu canto músicas minhas, letra e música minhas, canto uma vez, e “já tá bom”. Quando eu canto uma letra que não é minha, tenho que me apropriar daquilo. São coisas muito diferentes.
Você ainda pensa em fazer trilhas de cinema?
Sim, eu adoro fazer trilhas justamente porque é um convite à inspiração a outros mundos. Por exemplo: cada um dos cinco filmes que fiz me levaram para um tipo diferente de música. O Cabra-cega, mais recente (2005), é o mais parecido com o meu trabalho autoral, porque é um trabalho de canção, e a maioria das músicas são canções da década de setenta que foram repaginadas. São da época da ditadura.
Os outros filmes, quase todos, foram filmes históricos da década de 1890. Tem um deles que é futurista, o 1999, pro qual eu fiz aquela música lírica. É o oposto: é um filme que eu fiz em 1993 e que, além de compor a trilha, fiz a cantora da boate no Reveillon de 99. Pensei que tinha que compor algo diferente. Então fiz uma música lírica e eletrônica em latim. A música inclusive está no meu show.
Acabei fazendo shows em periferias em 93/94 e as pessoas gostavam da música. Falei “ah, vou carregar essa música comigo”. Vira e mexe eu ainda canto, está no meu show, está no meu primeiro disco. E é uma coisa que não tem muita explicação. Uma música lírica em latim – ninguém entende nada. Mas as pessoas, de todos os tipos, desde crianças, mendigos, senhores de idade, todo mundo vem falar: “ai que legal!”.
Há músicas que você não agüenta mais tocar?
Não. Quando eu estou muito cansada de tocar uma música - coisa de
estado de espírito - eu não canto. A não ser que o público peça muito; aí é outra coisa. Quando o público pede, a música se justifica. Eu entendo assim. A necessidade da música se faz através do outro. Às vezes você não está a fim de cantar para você, mas se o outro quer ouvir, muda toda a relação.
Normalmente, quando eu vejo que não estou muito a fim, mudo o set list. Aliás, sou a rainha de mudar o set list na hora do show. Os músicos ficam loucos. Já fiz até promessa de não fazer mais isso. Eles perguntam: “Mas qual, que música é essa???”. Eu respondo: “mas essa eu achei que você já conhecia...”. “Ah, eu não conhecia!”, eles dizem. (risos)
Você se chama Maria Fernanda Dutra Clemente. De onde vem Porto?
Eu saí de casa com vinte e um anos de idade. Havia pego o papel principal numa ópera-rock e meu pai não me deixou fazer. Tinha ficado com isso meio engasgado. Quando fiz vinte e um, “pensando” que já tinha maioridade, saí de casa e fui morar numa pensão. E aí meu pai falou: “você vai sujar o nome da família com esse negócio de cantora”. Hoje ele adora. Então eu fiquei procurando um nome pra mim. Passei por muitos.
Por quais?
Passei, primeiro, por todos que o meu pai têm, pra ver se eu gostava de algum. Meu pai, como é português, tem vários sobrenomes que não estão no RG, mas que são dele. Então ele tem Guedes, tem Vasconcelos, Menezes. Quando ele chegou ao Brasil tinha o apelido de Beto Guedes (risos). Passei por um monte de sobrenomes, e vários nomes já existiam, como Fernanda Menezes. Não dá, né? Fernanda da Costa. Aí quando falei Porto, eu gostei. Achei que tinha a ver com o som, gostei do som.
Se queria um sobrenome português...
Não sei se eu queria português, mas eu gosto do significado do porto, de ser um porto seguro. Apesar de ser uma contradição hoje, porque nunca estou em lugar nenhum, mas eu sempre quis ser uma pessoa que desse para os outros essa sensação, de que estou ali, e não a de alguém que foge.
Pra onde você está caminhando, neste momento?
Sempre acabamos fazendo na vida o que são os desafios mais íntimos. Por exemplo: pra mim viajar sempre foi uma dificuldade. Nunca gostei de viajar, e hoje isso já está completamente absorvido. Sempre fui muito tímida, então me expor era algo muito difícil.
Um grande problema que tenho é o de às vezes não viver os momentos, não curtir. Se você está num show, é ali que você tem que ser feliz. Não tem que ficar pensando se o público está gostando, se não está gostando; ou qual a próxima música que vai chegar – senão fica uma coisa muito racional durante o show. Venho aprendendo pelo menos isso: ser o mais inteira possível em cada lugar que eu estiver, e isso é algo muito pessoal. É um exercício para mim; não sei se vou conseguir chegar, mas percebo que tenho melhorado.
É ótimo assistir ao meu DVD e perceber que estava feliz naquele momento. Não estava pensando “Ai, será que está ficando bom?”, “Ah, porque o outro não-sei-o-que”. É assim: viver. Não ficar racionalizando nada na hora que você está lá.
Quando eu componho, sou completamente inteira. Eu só sei compor em estado de muita inspiração. Mas às vezes no palco, ou mesmo quando toco muito, acabo criando umas defesas, como observar o público, pensar outras coisas. Saio de um show feliz quando eu sei que vivi cada letra o mais verdadeiramente possível na interpretação. É onde eu gostaria de chegar.