11.10.20

CURTINHOS, LEVES E ENCANTADORES DUOS DE BÉLA BARTÓK

  

O duo A canção de combinar pessoas não chega a ter um minuto de duração mas carrega em si a riqueza de mais de uma década de pesquisa do compositor húngaro Béla Bartók. Assim como ele, outros 26 duos para violino, também de Bartók, agora fazem parte da programação Arte Presente no Theatro Municipal de São Paulo. Sob o título de Círculo Bartók acaba de ser lançada uma série de três vídeos que podem ser acessados gratuitamente.


As 26 peças, com cerca de um minuto cada, escolhidas da obra "44 duos para dois violinos", foram executadas por músicos da Orquestra do Theatro Municipal de São Paulo. São composições eruditas que revelam a beleza de melodias populares e pontuam o grandioso trabalho de pesquisa realizado por Bartok, considerado um dos mais importantes compositores do século 20. 


A pesquisa de campo de Bartók foi determinante não apenas para a trajetória musical e para a obra dele mas para História da Música. Os métodos usados pelo compositor húngaro foram tão importantes que estabeleceram as bases da chamada etnomusicologia moderna. 


Numa Hungria subjugada pela Áustria, Bartók, aos 24 anos, juntamente com o amigo e compositor Zoltán Kodály, iniciou viagens ao interior da Hungria em busca de uma riqueza musical que ele sabia existir mas que não se ouvia nos centros urbanos. 

 

Bartók acreditava que iria encontrar a verdadeira música húngara em aldeias do interior, entre os camponeses e suas antigas canções. 


As viagens nem sempre foram tranquilas. Ele  enfrentava estradas precárias e perigosas para alcançar lugarejos de difícil acesso, dormia em locais inóspitos, no chão, na palha, por vezes dividindo um quarto com toda uma família.  


O que não o impediu de ir adiante. Depois de cobrir a Hungria, o compositor estendeu a pesquisa a outras culturas, percorreu aldeias da Europa Central chegando até norte da África e parte da Ásia


A saída do circuito da Hungria lhe rendeu severas críticas mas sobre isso Bartók foi categórico: o compromisso do compositor não estava com o sentimento estreito de nacionalismo e sim com a Música. Ele sabia que era preciso banhar-se de diferentes gêneros e etnias para que a Música pudesse evoluir, avançar. Nas próprias palavras dele: “O pesquisador deve esforçar-se para esquecer todo sentimento nacional” e “querer se preservar de influências estrangeiras é retroceder”.  



Assim, Bartók não apenas trouxe à luz o que de melhor havia nas canções camponesas da Hungria e de outras regiões mas usou os elementos melódicos e harmônicos para construir a modernidade que tanto desejava na música erudita, incluindo a quebra dos padrões vigentes já saturados. 


O resultado da pesquisa foi impressionante, em 10 anos, com o auxílio de um fonógrafo, ele registrou, transcreveu, catalogou e classificou mais de 10 mil canções.


Os três vídeos apresentados lindamente pelos violinistas da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal de São Paulo trazem peças encantadoras em que é possível reconhecer o gigantesco trabalho de pesquisa de Béla Bartók.


Aproveitem!!!!






7.6.20

A ARTE ESTA LIVRE AGORA




Uma das coisas que me impressiona nesses tempos sombrios de pandemia é o fato de termos nos entregado, sem qualquer pudor ou constrangimento, ao paradoxo. Estamos vivendo o paradoxo em estado absoluto, em toda a sua plenitude. Sentimentos e ações chegam sem aquele intervalo de tempo e de reflexão em que podemos pender feito uma balança “ora penso num lado, ora penso no outro” ou “ora faço de um jeito e ora faço de outro”. Não. Estamos vivendo os lados ao mesmo tempo todo o tempo, sem nos darmos conta das escolhas ou da coerência. Esse viver tudo assim de supetão trouxe também a sensação de euforia, de liberdade.

Vi, nos primeiros dias de confinamento, pessoas que antes se colocavam discretas ao cumprir tarefas de serviços públicos e mesmo as que perambulavam nas calçadas de cabeça baixa esforçando-se para parecer invisíveis agora soltavam a voz pelas ruas em conversas corriqueiras, falando alto, se apropriando do espaço como que encantadas em escutar a própria voz, vivas, quase alegres, mesmo sob pressão iminente da morte. Nesses primeiros dias, fiquei da varanda, também encantada e temerosa, a olhar todas essas ressurgidas pessoas, o mais que eu podia.


O confinamento, por sua vez, e todo o seu conceito de aprisionamento veio com o desejo secreto, um prazer quase orgástico por poder parar. Um desejo que se arrastava pela existência, totalmente inconfessável e considerado imoral, à margem, ainda mais quando confrontado com um sistema econômico monstruoso, dilapidador de existências. Um desejo que foi apaziguado por essa reclusão compulsória e que aqueceu a alma.


Ao mesmo tempo que as artes vêm sofrendo um massacre, espremidas até o toco por forças completamente opressivas que imaginam destruí-las, elas nunca foram tão requisitadas. Aqueles que estão isolados em suas casas as sorvem como o ar para que possam se preencher de sanidade e sentido. E elas, as artes, se multiplicam exponencialmente em suas mais variadas expressões. Música, artes visuais, literatura, dança, teatro.... escancaram as portas de acesso e se replicam em palestras, cursos, lives, shows e encontros nas redes sociais, na web. E, por fim, saem às varandas e ruas. Sim, artistas por sobrevivência e muito amor se arriscam nas ruas e, claro, são muito aplaudidos. Sim, pode haver liberdade em meio a esse caleidoscópio gigante em que foi transformado o mundo (e de um jeito que nem dá pra pensar em fugir) e cujos movimentos nos assustam a cada segundo.


O que nos espera agora que não há mais o conforto das certezas? Elas ao que parece partiram. Não sabemos. Não há respostas. Podemos apenas e talvez nos preencher de beleza. Podemos apenas e talvez assistir um bom filme, ler um ótimo livro. Podemos apenas e talvez nos apoderarmos de nós mesmos. Podemos apenas e talvez olhar para o outro, confortá-lo, defendê-lo e acolher a ideia de que somos sim corresponsáveis pelo bem estar dele. Despertar amanhã também já parece um bom plano.