por Helena Piccazio
A personagem Zuzu Angel me pegou logo de cara, ela parecia interessante desde sempre. A moda que criou, os tabus que quebrou, sua atuação após a morte do filho.
No andar de cima, a vida antes de 14 de abril de 1971. Uma ampla e clara sala com muitos dos modelos criados, modernos e cheios de cor. E também vídeos, fotos e documentos, além da réplica do seu atelier de costura e criação, com um mural onde se pode deixar um recado escrito em pedaços de pano à disposição em cima da mesona de madeira.
No subsolo o choque da cor. A impressão de sufocamento pelo preto e vermelho das paredes e a vida depois de 14 de abril de 1971, dia da prisão de Stuart Jones, filho de Zuzu. Ali encontramos os modelos de protesto criados para as coleções que vieram depois dessa data. E uma prateleira com mais cartas e documentos, onde não consegui chegar porque estava muito cheio.
O momento mais tocante foi ler, na entrada dessa ala da exposição, a carta de Hildegard Angel, filha de Zuzu, irmã de Stuart, pessoa que reuniu todo o material para essa ocasião. Ela diz que, através dessa reunião de objetos, tenta reconstruir sua mãe, assim como sua mãe reunia tudo que podia em busca do filho. E de tanto reunir e procurar e gritar e provar, Zuzu foi morta numa emboscada, ironicamente talvez, no dia 14 de abril de 1976.
Não posso dizer que saí dessa exposição como entrei. Foi como conhecer um pouco das entranhas da história ainda próxima do meu país através da vida de uma mulher, que nem sequer ativista política era. Era apenas uma mãe em busca do corpo do filho.
Mesmo tendo se passado tanto tempo, 38 anos desde a morte de Zuzu, o que aconteceu parece ainda estar presente, de algum jeito. Talvez porque alguns dos personagens da história ainda sejam os mesmos, como Hildegard, por exemplo. Ou como minha mãe, reconhecendo a moda “da sua época”.
Nota: 9
Custo: R$ 0, fomos e voltamos a pé.
OUTRO OLHAR
por Claudia Piccazio
"...grená. Não, bordeaux... E fomos lá para o Grajaú."
"...grená. Não, bordeaux... E fomos lá para o Grajaú."
Hildegard Angel, filha mais nova de Zuzu Angel, perscruta a própria memória. A intenção é reconstituir em depoimento um dos momentos mais angustiantes da peregrinação da mãe em busca do filho, irmão de Hildegard. Uma peregrinação marcada pela perversidade, a mesma impressa na história do país nos tempos da ditadura.
Fui à Ocupação Zuzu Angel, exibida desde o
dia primeiro de abril no Itaú Cultural, sem a
noção exata da comoção que me causaria. Já no térreo, uma linha do tempo
toda pontuada por cordões vermelhos presos na parede com furadores, peça que
pertence ao universo de quem costura. Ali, também, depoimentos em vídeo de
Hildegard e da própria Zuzu. Falam dos momentos que antecedem a morte do
jovem Stuart, em 1971 e mostram uma entrevista de TV da Zuzu, no mesmo dia
de sua morte, em 1976. Ambos, mãe e filho, mortos durante o regime
militar.
Ao chegar no primeiro andar, somos
recebidos por um canteiro de espadas de São Jorge,
da alma caipira. A mesma que elegeu, com muita consciência, a
brasilidade para conceituar a moda e nela estampar pássaros, borboletas,
folhagens e trabalhar com rendas, bordados e pedrarias nacionais. Lá estão
as fotos da família, modelos exclusivos que representam a sua produção,
estampas para tecelagem criadas por Zuzu bem como vídeos de desfiles
nacionais e internacionais. E indagações que instigam o presente como a
frase "O que sua roupa fala sobre você?" No fundo da sala, a réplica
do atelier de costura. Ali, o universo de criação em completa
intimidade entre as máquinas de costura, linhas, tesouras, cestas com
tecidos, potes e potes de botões, caixas com croquis, coleção de dedais,
rendas e cianinhas, moldes de papelão. Um lugar para se perder em
lembranças.
Ao percorrer os espaços, percebo que tudo
ali foi extremamente pensado para ser múltiplo. Até mesmo o lugar
escolhido para a colocação de um simples alfinete parece estar preenchido
de sentido, um sentido que ultrapassa o simples objeto e dá uma dimensão
holográfica ao roteiro de vida de Zuzu, lincado, todo o tempo, à história
do país e do mundo. E também ao presente. Na escolha dessa dinâmica,
o resultado é uma Ocupação que vai além dos limites das salas do Itaú
Cultural. Alinhados no Youtube, por exemplo, estão depoimentos da
pesquisadora Heloisa Buarque de Holanda e do especialista em história da
arte e história da indumentária e da moda João Braga (que conseguiu com
muita propriedade contextualizar o trabalho de Zuzu no cenário da moda
nacional e internacional) feitos especialmente para a Ocupação Zuzu Angel.
E provavelmente lá estarão outros especialistas renomados dentre o
batalhão de profissionais convidados, das várias áreas afins,
para encontros, cursos, palestras, desfiles, performances, mostra de
filmes permitindo assim uma ampla discussão sobre moda, arte, cinema,
história, política. Curadoria, impecável.
Encontro ainda no depoimento em que Hildegard afirma que sua mãe
"estava se preparando para ser presa, para ser morta", o savoir
faire de Zuzu em um episódio que seria hilário, se não
fosse trágico. Um dia, ao receber uma de suas clientes, Heloisa
Lustosa, filha do Pedro Aleixo, vice-presidente da República do governo Costa e
Silva, Zuzu disparou "Oi Heloisa, me desculpe eu tô atrasada mas é que eu
cheguei da minha sessão de parafina para tirar celulite porque eu soube que
esses milicos, o negócio deles agora é assim, dizem que quando eles prendem a
gente tiram toda a roupa e ficam rindo das nossas varizes e das nossas
celulites...e da minha celulite ninguém vai rir!"
Fomos juntas eu e minha filha ver a
Ocupação e o último lugar que percorremos foi o subsolo,
o luto. Zuzu em negro e em rezas, com o que ela sabia, sentia e era, dedicado
a um único propósito. Saímos caladas e eu precisei de um bom tempo para
me recuperar, se é que me recuperei.
Nota: 10
Custo: R$ 0, fomos e voltamos a pé.
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