Chego ao centro da cidade em tempo de ver a palestra do professor Aziz Ab´Saber sobre a imigração árabe no Brasil, às sete horas da noite. Estava na Galeria Olido e a palestra fazia parte da mostra Amrik, sobre a Palestina. Seria lá mesmo o meu próximo destino, uma hora depois.
Depois de ouvir o experiente geógrafo de 82 anos passo para sala Paissandu, para ver a apresentação de dança “Conexão e Organização da Desestrutura no Desenvolvimento de uma Cosmologia”, criação do reconhecido Diogo Granato e performance do grupo Silenciosas, formado por Ana Dupas, Nat Cat e Xica Lisboa.
A apresentação parece ter tido êxito quanto à proposta inicial: desconstrução. Era a sensação do descaso, o descaso no sorriso da dançarina para a platéia, o descaso no novo, o descaso no que não se entende. O descaso daquilo que não pode ser racional.
Semi-blecaute inicial e a silhueta de três garotas apareceu. Dava início uma música e elas tentavam uma coreografia espelhada que fracassava. Uma se aproximou do público e dançou desritmada. Ouviu-se uma voz vinda da cabine – microfone: “Lisboa, o que você está fazendo? Olha pra platéia. Eles não merecem isso que você está apresentando”. Lisboa continua dançando.
A agressividade com que dançava e os movimentos óbvios e simples que se aproximavam da platéia-pessoa-comum criaram em mim uma interrogação que me fazia ter vontade de responder à pergunta feita à Lisboa. Se o público merece isso? Uma apresentação do óbvio descompassado? Sim. Merecemos. Merecemos ver que a dança está no passo torto, e no espelho mal ensaiado. Merecemos ver que a dança não é só coupé, demi plié, gran jeté. Merecemos ver que a dança pode ser o desconfortável desconcertante, destriangulado, descoordenado.
Dança, dança, dança, pára. Interferência do personagem-diretor “O que é isso! Desenvolva”. Dança, dança, dança. Pára. Cria, recria, desconstrói. Bagunça, organiza, troca de roupa. Pára. Interferência: “Circula, isso, circula”. Frenética. Ritmo. Desritmo. Sorri. Dança, dança, cansa. Deita. Respira, inspira, interferência: “Ocupe o palco. Estatela”. Cai. Levanta. Senta, dança, dança, dança. Cambalhota. Faz a ponte, parada de mão. Abre a perna, fecha o braço. Pula. Pula. Pula. Troca de roupa. Corre. Fundo do palco, procênio. Interferência: “Olhem o público, vocês acham que eles estão gostando? Vamos meninas, sintam”. Coloca a luva. Interferência: “sinta a luva entrando, sinta a roupa”. Dança, Dança. Cai o pano que figurava no palco: uma bateria e uma baterista são reveladas. Toca. Ritmo. Ritmo. Bate. Dança, dança, dança. Interferência: “não pare de tocar, Mariá. Vamos, mais, mais rápido”. Toca, toca, toca. Dança, dança, dança. Cai. Respira. Não pára. Pára. Cambalhota. Prato, pedal, bumbo, caixa. Bagunça, organiza, constrói. Dança, dança, dança. Surdo, prato de ataque. Tom 1. Tom 2. Conexão. Desconexão. Organização. Desorganização. Desestrutura. Estrutura. Desenvolvimento. Envolvimento. Cosmologia. Cosmologia.
4 comentários:
Seu comentário sobre o espetáculo de dança me deixou curiosa para saber se ele me provocará tantos sentimentos quanto parece ter provocado em vc. Seu texto é agradavel e provocador. Não sei se gostarei do espetáculo, mas adorei o seu texto.
Curti a analogia do começo, essa peça é a própria faixa de Gaza: destituída, decomposta, disconexa. A voz do diretor que surge do além é a imagem do comando que emerge da Nova Jerusalém. Abole a liberdade de expressão e deixa como única alternativa a arte da destruição. Pobres brimas que, ao fim do espetáculo, se orgulhavam da tosqueira que fizeram, reluzindo seus olhos mouros [essa foi bonita, hein??] em busca de aplausos. Melhor escondê-los sob a burka... Eu só lamentei [não em frente ao muro, é claro].
Quanto ao resto do texto, gostei do ritmo, muito. Ele salta o desenvolvimento e plana sobre a estrutura. Transmite a mesma falta de ar que dos 50 segundos de espetáculo que presenciei...
nossa, mas que viagem esse teu último parágrafo! muito bom mesmo
tem mó fluidez, dá a impressao exata do que aconteceu... é incrível como parece que, lendo, a gente na verdade está ouvindo o diretor falar!!!
muitos parabéns!
baccios
olá, eu sou o próprio diogo granato, e gostei muito do que foi dito sobre o espetáculo, parece que causou exatamente o que se pretendia...o texto também ficou muito bom, e relembra o texto que usamos para definir as intérpretes-criadoras no site... caso os leitores deste blog (que encontrei por acaso em minhas navegações) queiram dar uma olhada, entrem no "sobre elas" no site www.silenciosas.com (os textos são da baterista - mariá Portugal)... obrigado pela crítica! e peço autorização para usá-la no clipping das silenciosas...por favor me responda no diogogranato@ajato.com.br ...
sinceramente... diogo
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