Futebol e Ballet
por Luciano Piccazio
Carmem era quase um homem. Trinta em poucos anos, tinha tudo para virar bailarina, mas escolheu ser jogadora de futebol.
Sua mãe, dançarina profissional, chorava quase todos os dias. Deu educação espartana à pequena, e a pequena foi crescendo, e crescendo, e crescendo. Não sabia bem o que havia acontecido, mas Carmem, criada e educada a passos de plié e grand plié, largou tudo para dedicar-se ao esporte.
Certo dia, depois de um jogo, Carmem foi chamada de canto por uma colega de time. “Carmem, tua mãe está aí, quer falar com você”. Toda suada, fedendo futebol, foi até o encontro de sua mãe, que chorava em prantos.
- Querida, você precisa vir comigo. Seu pai está mal. O coração dele já não era lá essas coisas. Agora parece que piorou.
Chateada de perder o chopp com as amigas, lá se foi a atleta ao hospital. Chegou lá, mas o velho pai, bailarino assim como a mãe, já havia falecido. Triste, Carmem ajudou a preparar as papeladas do enterro, e quase bateu no agente funerário quando este lhe falou o preço dos documentos.
Sua mãe chamou-a de lado.
- Carmenzita querida, tenho que te falar. Que foi, mãe? Seu pai me falou algo antes de morrer. Falou o que? Então, ele tinha um último desejo. Ahn, fala. Você sabe que teu pai te amava muito, né? Sei. Então, ele queria que você dançasse numa apresentação de ballet, ao menos uma vez na vida. Tá me zuando, né? Não, falo sério. Ah, mãe, pelamordeDeus, olha pra mim. Filhinha, por favor, era importante pro seu pai. Parece mais coisa sua. Não é não, se fosse te falaria, por favor, você sabe, desejo de quem ta pra morrer é sagrado, se não cumprir pode dar o maior problema. Já vem você zicando, mãe, porra. É sério.
E foi assim, com tais argumentos tão convincentes, que Carmem, Carmenzita, foi ensaiar para o ballet que a escola de dança de sua mãe apresentaria no final do ano. Já era outubro, então haveria apenas mais um mês de ensaio.
Pularemos a parte dos ensaios e vamos direto à apresentação. O teatro estava lotado de mães vestidas como abajures coloridos e exageradamente perfumados, maridos tentando fazer um social com as mulheres oficiais, crianças catarrentas correndo de um lado para o outro, alunas do ballet preocupadas com a apresentação que, para elas, é nada mais do que a coisa mais importante do mundo.
Na coxia, Carmem lutava, mais uma vez, contra o espartilho. Não havia santo que a fizesse entrar naquilo. Desde o começo dos ensaios já havia rasgado dois, e não queria rasgar mais um. Ao menos não involuntariamente. As sapatilhas foram mais fáceis de entrar, já que haviam mandado fazer um no seu número, 42.
Tudo pronto, Carmem com aquele corpo de um jogador de futebol, totalmente cor de rosa, pequenas penugens aparecendo no rosto. Começa a música “arroz-de-festa” do Tchaikovsky.
De repente, um estalo. Havia tentado ser bailarina no último mês. Obviamente sem sucesso nenhum, já que aquela não era sua praia. Porque não jogar futebol ali, naquele teatro? Claro! Ia dançar como se estivesse em campo, como se fosse Ronaldinho Gaúcho, quando não joga pela seleção.
Então, entrou Carmem em campo. Gramado livre, deu duas piruetas mágicas para se exibir para os torcedores, que vibraram. Quando entrou o primeiro marcador, gingou para a direita, gingou para a esquerda, e deixou o adversário de espacate aberto no chão.
Quantos mais marcadores e companheiros de time chegavam, mais Carmem brilhava. Brilhava e o público ia à loucura. As mães esqueciam de suas filhas e os pais do jogo importantíssimo entre Figueirense e Criciúma que haviam perdido. Aquilo era muito mais interessante. Quando acabou o espetáculo, Carmem saiu comemorando dando socos no ar, como Raí. Saiu de lá correndo e foi para a coxia. Foi para o chuveiro.
Luciano Piccazio é editor do Blog Arte Free
Carmem era quase um homem. Trinta em poucos anos, tinha tudo para virar bailarina, mas escolheu ser jogadora de futebol.
Sua mãe, dançarina profissional, chorava quase todos os dias. Deu educação espartana à pequena, e a pequena foi crescendo, e crescendo, e crescendo. Não sabia bem o que havia acontecido, mas Carmem, criada e educada a passos de plié e grand plié, largou tudo para dedicar-se ao esporte.
Certo dia, depois de um jogo, Carmem foi chamada de canto por uma colega de time. “Carmem, tua mãe está aí, quer falar com você”. Toda suada, fedendo futebol, foi até o encontro de sua mãe, que chorava em prantos.
- Querida, você precisa vir comigo. Seu pai está mal. O coração dele já não era lá essas coisas. Agora parece que piorou.
Chateada de perder o chopp com as amigas, lá se foi a atleta ao hospital. Chegou lá, mas o velho pai, bailarino assim como a mãe, já havia falecido. Triste, Carmem ajudou a preparar as papeladas do enterro, e quase bateu no agente funerário quando este lhe falou o preço dos documentos.
Sua mãe chamou-a de lado.
- Carmenzita querida, tenho que te falar. Que foi, mãe? Seu pai me falou algo antes de morrer. Falou o que? Então, ele tinha um último desejo. Ahn, fala. Você sabe que teu pai te amava muito, né? Sei. Então, ele queria que você dançasse numa apresentação de ballet, ao menos uma vez na vida. Tá me zuando, né? Não, falo sério. Ah, mãe, pelamordeDeus, olha pra mim. Filhinha, por favor, era importante pro seu pai. Parece mais coisa sua. Não é não, se fosse te falaria, por favor, você sabe, desejo de quem ta pra morrer é sagrado, se não cumprir pode dar o maior problema. Já vem você zicando, mãe, porra. É sério.
E foi assim, com tais argumentos tão convincentes, que Carmem, Carmenzita, foi ensaiar para o ballet que a escola de dança de sua mãe apresentaria no final do ano. Já era outubro, então haveria apenas mais um mês de ensaio.
Pularemos a parte dos ensaios e vamos direto à apresentação. O teatro estava lotado de mães vestidas como abajures coloridos e exageradamente perfumados, maridos tentando fazer um social com as mulheres oficiais, crianças catarrentas correndo de um lado para o outro, alunas do ballet preocupadas com a apresentação que, para elas, é nada mais do que a coisa mais importante do mundo.
Na coxia, Carmem lutava, mais uma vez, contra o espartilho. Não havia santo que a fizesse entrar naquilo. Desde o começo dos ensaios já havia rasgado dois, e não queria rasgar mais um. Ao menos não involuntariamente. As sapatilhas foram mais fáceis de entrar, já que haviam mandado fazer um no seu número, 42.
Tudo pronto, Carmem com aquele corpo de um jogador de futebol, totalmente cor de rosa, pequenas penugens aparecendo no rosto. Começa a música “arroz-de-festa” do Tchaikovsky.
De repente, um estalo. Havia tentado ser bailarina no último mês. Obviamente sem sucesso nenhum, já que aquela não era sua praia. Porque não jogar futebol ali, naquele teatro? Claro! Ia dançar como se estivesse em campo, como se fosse Ronaldinho Gaúcho, quando não joga pela seleção.
Então, entrou Carmem em campo. Gramado livre, deu duas piruetas mágicas para se exibir para os torcedores, que vibraram. Quando entrou o primeiro marcador, gingou para a direita, gingou para a esquerda, e deixou o adversário de espacate aberto no chão.
Quantos mais marcadores e companheiros de time chegavam, mais Carmem brilhava. Brilhava e o público ia à loucura. As mães esqueciam de suas filhas e os pais do jogo importantíssimo entre Figueirense e Criciúma que haviam perdido. Aquilo era muito mais interessante. Quando acabou o espetáculo, Carmem saiu comemorando dando socos no ar, como Raí. Saiu de lá correndo e foi para a coxia. Foi para o chuveiro.
Luciano Piccazio é editor do Blog Arte Free
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