14.7.06

I Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo - Memorial da América Latina - 12/07/06

30 anos de esperança e luta

Até agora não entendi o porquê, mas achava que o filme Botín de Guerra, parte da programação do I Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, seria exibido às 16h30. Errado. A sorte é que meu tio – que havia almoçado em casa – pôde me dar uma carona, e por isso cheguei ao Memorial às 16h05. Em cima da hora.

Ao chegar à bilheteria e perceber que estava atrasado para o início do filme, já que havia me equivocado com o horário, guardei o cigarro que ensaiava acender e corri para a enorme sala 1, onde as luzes já estavam apagadas e a música de abertura ameaçava terminar. Lá dentro, mergulhado em um breu que me impedia de enxergar os meus próprios pés, o primeiro pensamento que me veio à cabeça foi “e agora, como é que eu faço para arrumar uma poltrona sem correr o risco de tropeçar na escada ou de sentar no colo de alguém?”. Permaneci atônito durante cinco minutos, encostado na parede que havia atrás da última fileira, literalmente sem enxergar e sem saber o que fazer. A sorte é que, pouco depois, um segurança de alma caridosa entrou na sala com uma lanterna e conduziu este rapaz perdido a um local seguro.

Vencido o desafio de conseguir um lugar, voltei minha atenção para a tela, onde o documentário Botín de Guerra, um produção “metade argentina/metade espanhola” dirigida por David Blaustein, já atingia os primeiros cinco minutos de um total de 118, tempo em que narrou a bonita trajetória das Avós da Praça de Maio, uma organização dedicada a buscar e localizar os filhos de quem foi preso, torturado ou morto durante a última ditadura argentina, iniciada em 1976.

O filme é um pouco cansativo, pois são quase duas horas de depoimentos curtos – de, no máximo, um minuto cada – às vezes intercalados por gravações da época, como as famosas cenas em que as Mães e Avós da Praça de Maio protestavam em frente à Casa Rosada, sede do governo argentino, levando cartazes e sustentando os tradicionais lenços brancos na cabeça, nos quais escreviam os nomes de quem havia sido apanhado pelo cruel regime militar.

Cansativo na forma, mas não no conteúdo. Comoveu-me muito conhecer a história de senhorinhas de 60, 70, 80 anos que dedicaram quase metade de suas vidas à difícil tarefa de encontrar seus netos. Meninos e meninas que foram separados de seus verdadeiros pais quando ainda eram bebês ou crianças, pois quando os militares detinham uma mulher grávida, seu filho era entregue, imediatamente após o nascimento, às famílias dos próprios quadros do exército ou àquelas favoráveis ao regime. E da mesma forma, quando uma família inteira era apanhada, os filhos também eram entregues a gente que apoiava a ditadura mais sangrenta do Cone Sul.

Para se ter uma idéia, em sete anos – de 1976 a 1983 – foram declaradas como desaparecidas 30 mil pessoas. Considerados terroristas pelo governo assassino do general Jorge Rafael Videla, presidente do país, estes indivíduos eram arrancados de suas casas, trabalhos, escolas, e arrastados a prisões clandestinas, onde a tortura havia sido instituída como prática legal de punição e interrogatório. A principal delas estava instalada no prédio da Escola Mecânica da Armada. Além disso, muitos morreram nos chamados “vôos da morte”, quando eram lançados vivos em alto mar por aviões ou helicópteros do exército.

Uma matança suja que prevaleceu até 1983, ano em que a eleição de Raúl Alfonsín restituiu o regime democrático na Argentina. Um presidente, aliás, que chegou à Casa Rosada com a responsabilidade de zelar pela esperança de cidadãos que clamavam por liberdade política, por uma dura punição aos militares assassinos e pela reconstrução econômica do país, que durante a ditadura foi submetido à invasão de empresas e produtos estrangeiros, o que prejudicou – e muito – o desenvolvimento da indústria local. Uma verdadeira entrega econômica.

Esperança que ruiu pouco depois, com a explosão da hiperinflação e com a criação de duas leis que interromperam os julgamentos (e as conseqüentes condenações) dos acusados de seqüestros, assassinatos, roubos e torturas: a Lei do Ponto Final e a Lei de Obediência Devida.

Por terem sido entrevistadas pouco antes do ano 2000, momento em que o país era ainda governado por Fernando de la Rúa, as abuelas que protagonizam o documentário demonstravam pouco otimismo em relação a punições justas e adequadas a quem esteve envolvido no desaparecimento de tantas pessoas. Mas recentemente, com a eleição de Néstor Kirchner, o tema voltou à pauta, trazendo um novo sopro de força àquelas simpáticas senhoras, que há 30 anos sofrem para recuperar pelo menos uma parte dos filhos que foram covardemente mortos: seus netos.

Após ter deixado a sala muito emocionado, encontrei duas amigas no café montado no saguão do espaço onde é realizada a exibição dos filmes. Após conversar um pouco, decidi pegar o metrô na estação da Barra Funda, pois tinha um compromisso marcado dali a alguns minutos na avenida Paulista. Quem já foi obrigado a utilizar a linha vermelha do metrô paulistano entre 18 e 19 horas, sabe que a tarefa exige coragem. Mas, como não tinha tanta pressa, resolvi aguardar alguns minutos, tempo em que fui até uma lanchonete e pedi uma cerveja em lata... Que estava quente.

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Curiosidade: Comunicado N° 19, de 24 de março de 76 (dia exato em que ocorreu o golpe militar), dirigido à imprensa argentina.
“Comunica-se à população que a Junta de Comandantes Gerais definiu que está sujeito à punição com a pena de reclusão por tempo indeterminado aquele que, por qualquer meio, difundir, divulgar ou propagar comunicados ou imagens provenientes ou atribuídas a associações ilícitas ou pessoas ou grupos notoriamente dedicados a atividades subversivas ou ao terrorismo. Será reprimido com reclusão de até dez anos aquele que, por qualquer meio, difundir, divulgar ou propagar notícias, comunicados ou imagens com o propósito de perturbar, prejudicar ou desprestigiar as atividades das Forças Armadas, de Segurança ou Policiais”.


Para saber mais:
24 de marzo – http://www.24demarzo.gov.ar/
Abuelas de Plaza de Mayo – http://www.abuelas.org.ar/

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Custos:
Metro – R$ 1,05 (com passe de estudante) na volta. A ida foi de carona
Cerveja (quente) – R$ 2,30

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Nota: 10.

Um comentário:

Helô Louzada disse...

acho que eu deveria ter assistido a esse filme e não ao monobloc !
adorei o texto!